Courrier Internacional, N.º 102 - 16 a 22 de Março de 2007
"A OBSESSÃO DOS TÍTULOS
O país dos doutores e engenheiros
Um estrangeiro que venha a Portugal poderá pensar que há uma bizarra profusão de médicos. É que nenhum outro povo dá tanto uso ao título de «doutor».
A primeira surpresa para um estrangeiro que aterre em Portugal pode ser o número anormal de médicos que existe no país. Um ouvido atento em qualquer café de Lisboa, à hora das refeições, poderá contar pelo menos uma dúzia de: «Como está, doutor?», «O que é que lhe apetece comer, senhor doutor?», «Hoje temos um excelente arroz de marisco, senhor doutor».
O estrangeiro não deve pensar que, por casualidade, entrou num local mesmo ao lado de um grande hospital. É que, em Portugal, basta ter passado pelas salas de aula de uma universidade para obter o título de doutor. E, muitas vezes, nem é preciso tanto. Uma pessoa que ocupe um cargo de alguma importância ou que tenha, simplesmente, um ar de executivo, pode ser tratada por doutor pelo empregado do restaurante, pelo funcionário de um serviço público, pelas recepcionistas da maioria das empresas, pelas empregadas das lojas e, claro, pelos seus subordinados.
Quando não é doutor, pode ser engenheiro ou arquitecto. E se o empregado se engana, é possível que o próprio doutor, engenheiro ou arquitecto se encarregue de o corrigir. A um estrangeiro soa sempre da mesma maneira: extremamente formal e um tanto ridículo. Sejamos justos: a muitos portugueses também soa ridículo, especialmente aos mais jovens. «Somos o país dos doutores e engenheiros», dizem os críticos, com ironia. A ironia ainda é maior quando os números dizem que apenas dez por cento da população activa portuguesa possui formação universitária, a taxa mais baixa dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico), cuja média é de 23 por cento. Ou, pensando melhor, talvez não seja tão irónico: aqui pode estar a chave do mistério de um tratamento tão diferencial a quem se limitou a frequentar a universidade.
No século XIX e no início do XX, os (poucos) filhos da burguesia e dos grandes proprietários rurais que conseguiam fazer estudos superiores regressavam à terra e eram conhecidos como «doutores», senhores distintos e merecedores de grande reverência. A denominação manteve-se, apesar da democratização, e continua a ter o mesmo significado: é uma forma de admiração, diferença e superioridade que, em muitos casos, os próprios beneficiários se empenham em manter. Mesmo quando não querem aceitar este tratamento, os portugueses vêem-se obrigados a utilizá-lo por estar tão enraizado. Não pôr um título antes do nome de alguém, em certas ocasiões, pode soar muito rude e de má educação. O «senhor» não é suficiente. Por isso, é frequente, na televisão ou na rádio, ouvir um jornalista dizer «engenheiro José Sócrates», se estiver a entrevistar o primeiro-ministro, ou «doutor Mário Soares», se quiser interpelar o ex-Presidente da República. Na maioria dos casos, os portugueses só dão conta de como isso é bizarro quando viajam para o estrangeiro e, ao pagarem com cartão de crédito, o empregado lhes pergunta, ao ver o «Dr.» antes do nome: «Qual é a sua especialidade?». Se viajar para Portugal, saiba que «doctor» em português se diz doutor. Pode ser-lhe muito útil."
Margarida Pinto
El Periódico de Catalunya
Barcelona
2 comentários:
É a triste realidade do nosso país...
infelizmente tenho notado que em muitos locais para se ser tratado condignamente temos que levar o certificado de habilitações :(
beijos
Bem "retornada" seja- sinceramente não acreditei que a ausência fosse prolongada.
O que me chateia sempre é não me chamarem Senhor Bacharel, título que possuo, e que acho mais distinto do Marquês ou Barão- para não falar do de doutor, porque ainda não caiu na vulgaridade.
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